"Ativismo judicial é uma imbecilidade que inventaram"
Por Alessandro Cristo e Marcos de Vasconcellos
Em 1977, Nelson Nery Junior se formou em Direito na
Universidade de Taubaté. No ano seguinte, entrou para o Ministério Público do
Estado de São Paulo, onde ficou até 2004. Cinco dias depois de se desligar do
cargo de promotor, foi procurado por um colega advogado, que lhe pediu para
fazer seu primeiro parecer, sobre uma questão processual. A partir desse dia,
Nery conciliou a atuação como advogado com uma produção incansável de pareceres
— que ele chama de “filé mignon da advocacia” — ao custo médio de R$ 300 mil
cada.
O advogado dá cerca de quatro pareceres por mês. Além disso,
é autor ou organizador de 90 livros — a maioria envolvendo Direito Civil ou
Processo Civil. A escrita é conciliada com as aulas, que ministra na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) desde 1979 e com a atuação no
escritório próprio, que lançou há três meses — depois de oito anos no
Magalhães, Nery e Dias Advocacia.
Em suas conversas, repete constantemente — e orgulhosamente
— uma frase de três palavras: “Foi meu
aluno”. Além dos pupilos que hoje ocupam cargos no Judiciário, seus
ensinamentos e teses também seguem da sala de aula e livros para os tribunais.
Uma busca simples de seu nome na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
aponta 9,5 mil citações em decisões monocráticas e 2,2 mil em acórdãos. Apenas
a título de curiosidade, o nome de Humberto Theodoro Júnior, outro luminar da
doutrina jurídica, aparece em 3,8 mil decisões monocráticas e o de Cândido
Rangel Dinamarco, em 4,9 mil.
O valor da jurisprudência dos tribunais superiores e do
Supremo Tribunal Federal, aliás, tem sido uma grande preocupação de Nery
Junior. O ministro acha que o Judiciário têm privilegiado demais a
jurisprudência, com a criação de súmulas, que subvertem a ordem do Common Law,
forçando que juízes decidam de determinada maneira, quando deveriam utilizar,
por vontade própria, decisões anteriores como base para julgamentos atuais.
“Você só sabe o que é um precedente quando se depara com um caso semelhante no
futuro. Precedente obrigatório não é precedente”, diz o professor.
As súmulas, além de muitas inconstitucionalidades, têm
contornos autoritários, na visão de Nery. Segundo ele, o projeto de novo Código
de Processo Civil pretende aumentar o poder do Estado e reduzir direitos do
cidadão. Foi um código pautado pelo Judiciário, “que visa apenas baixar pilha
de processo de prateleira de juiz”.
O próprio ativismo judicial é criticado pelo advogado, para
quem a atuação do Supremo ao ampliar o alcance de seus julgamentos, como no
caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, contraria a Carta Magna. “O
Supremo não pode mudar a Constituição. Ele não foi eleito para isso”.
Mesmo tendo sido do Ministério Público por 27 anos, Nery não
se esquiva de criticar a atuação do órgão, principalmente nos casos criminais.
Os promotores de Justiça, que deveriam promover a Justiça, de forma imparcial,
como manda a Constituição, têm atuado de forma midiática e inquisitorial, em
sua avaliação. Para Nery, o próprio MP pode ser responsabilizado pela sensação
de impunidade que atinge a população brasileira, pois dá peso demais às
acusações, sem ter consistência para mantê-las.
Ao receber a reportagem da revista eletrônica Consultor
Jurídico em seu escritórioem São Paulo, onde mantém um piano de meia cauda para prática diária, o
professor falou sobre a carreira e sobre os rumos do Judiciário brasileiro.
Leia a entrevista:
ConJur — Uma busca simples de jurisprudência aponta seu nome
em 134 acórdãos e 384 decisões monocráticas no Supremo. No STJ os números são impressionantes:
seu nome aparece em 2.249 acórdãos e 9.549 decisões. Muito por conta da sua
produção acadêmica — com 90 livros publicados ou organizados e edições — e de
pareceres. Em 2010, o senhor publicou uma coletânea de pareceres intitulada
Soluções Práticas de Direito, que teve de ser editada em quatro volumes, com
4.236 páginas. Como é possível ter essa produção intensa e manter um
escritório?
Nelson Nery — Eu e minha esposa (Rosa Maria Andrade Nery)
escrevemos. Nossos horários para isso são das 5h às 8h ou das 22h às 4h, quando
não toca telefone e conseguimos produzir. Depende do dia. Eu tenho quatro
livros de referência, que são os códigos comentados, Constituição comentada,
que tenho que atualizar diariamente, porque não adianta eu trabalhar neles quando
o editor chegar e falar: "Precisa fazer uma nova edição". Tem 2 mil
páginas, não dá para fazer se não for todos os dias. Esses livros saem todo
ano.
ConJur — Como é a produção de pareceres?
Nelson Nery — São em média quatro por mês. Cada parecer tem
80 ou 100 folhas. Quem me ajuda a fazer pesquisa é a equipe que trabalha
comigo, evidentemente. Quem escreve e faz as teses? Sou eu. Em reunião, o
cliente relata o caso, eu chamo meus advogados para ouvir. Eu estudo o caso
três ou quatro dias, vou pesquisar na biblioteca, consulto a jurisprudência
para ver se a tese é viável. Ligo, então, para o cliente, apontando como
podemos fazer, que pontos podemos mudar e pergunto se ele concorda com a tese
que eu desenhei. Ele aceitando, eu reúno minha equipe, explico a tese — pois o
caso eles já ouviram na reunião — e já listo uns 50 livros onde eu já
pesquisei, dizendo o que eles vão encontrar neles. Cito também a jurisprudência
do Supremo, do STJ, peço para eles acharem para mim, imprimirem e trazerem.
ConJur — Quanto tempo leva para fazer isso tudo?
Nelson Nery — Umas duas semanas, mais ou menos.
ConJur — De uma reunião até a entrega do parecer?
Nelson Nery — Não. A entrega do parecer é em 30 dias. Já
aconteceu de me pedirem parecer para amanhã, mas isso não é rotina. Normalmente
levamos 20 ou 30 dias.
ConJur — Com cerca de quatro pareceres por mês, a produção é
intensa. Teve algum ou alguns que te marcaram mais?
Nelson Nery — Vários. Parecer é o filé mignon da advocacia,
porque você resolve um caso pontual, é remunerado por isso e acabou. Tem
começo, meio e fim em pouquíssimo espaço de tempo. Não é uma causa de
advocacia, que você começa hoje e pode terminar em dois, cinco ou 22 anos. Eu
sou advogado e é claro que eu tenho causa que vai demorar 15 ou 20 anos. Todo
advogado tem. Quando eu sou contratado para dar parecer, sou um jurista, e não
advogado. Como advogado, tenho que defender o interesse do cliente, do ponto de
vista dele e ponto final. Mas quando eu sou parecerista, preciso ver se a tese
é plausível, se não conflita com aquilo que eu já escrevi ou com aquilo que
penso.
ConJur — Quando há conflito o senhor diz que não vai fazer e
pronto?
Nelson Nery — Lógico. Já aconteceu várias vezes. Um exemplo
recente: veio aqui um laboratório me procurar pedindo um parecer sobre
medicamento genérico. Eu disse: “Pode parar, porque eu penso o contrário, eu já
dei um parecer afirmando que isso que você está pedindo em matéria de genérico
não é possível. Então, não posso dar esse parecer.” Liguei então para o
professor Arruda Alvim, conversei com ele sobre o caso. Ele respondeu que não
tinha conflito com o caso e falou que eu poderia mandar o cliente para ele, que
é um jurista gabaritado. E eles contrataram o Arruda Alvim.
ConJur — Teses suas já mudaram a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça. O senhor pode dar exemplos?
Nelson Nery — Houve, por exemplo, quando a Seção de Direito
Público do STJ estava decidindo que não poderia haver repasse da Contribuição
Social sobre o Lucro Liquido (CSLL) e do Cofins para o consumidor, no caso das
operadoras de telecomunicações. Esse era o entendimento do STJ. Fui, então,
procurado por todas as teles — Oi, Tim, Vivo, Brasil Telecom — para fazer um
parecer. Eu dei um parecer só para todas juntas, no sentido de que o repasse
não ofendia o direito do consumidor e que, no final das contas, se a empresa
não puder repassar os tributos, vai ficar inviável. Ela ficaria com todo o
custo e depois de três anos teria só prejuízo. A votação mudou e teve só um ou
dois votos contra a minha tese.
ConJur — O senhor também atuou no caso do ISS em leasing.
Nelson Nery — Também foi acolhida a tese de que a entidade
tributante poderia fazer o lançamento no lugar da sede da empresa de leasing e
não da operação. Vários municípios do Brasil estavam fazendo lançamento em
outras praças. O empresário questionava, então: “Eu pago na sede onde eu tenho
a minha empresa de leasing. Eu estou sendo bitributado, tritributado,
quadritributado... Onde vai parar isso?” A lei complementar diz o contrário,
mas, no caso do leasing, o serviço principal é prestado no local da sede.
Outro caso foi o que discutiu a prescrição da ação coletiva.
Tem várias teses. Eu dei uns três ou quatro pareceres no STJ sobre a matéria:
“Prescrição da execução da sentença coletiva; da pretensão individual homogênea
no processo coletivo. Em uma delas, por exemplo, a 3ª e 4ª Turmas já tinham
fixado entendimento, ou seja, a 2ª Seção já tinha fixado entendimento em um
sentido. Quando dei um parecer no caso, o ministro Luís Felipe Salomão ofertou
a tese e eles mudaram a orientação das duas turmas.
ConJur — São muitos pareceristas no Brasil?
Nelson Nery — Tem menos de dez que dão parecer, mesmo, que
são os mais procurados. A maioria [dos chamados pareceristas] dá opinião legal
ou memorando.
ConJur — O que diferencia o parecer de uma opinião legal?
Nelson Nery — Primeiro, o peso do nome de quem vai assinar.
Segundo, a profundidade com que vai ser examinado o tema. Tem pessoas que ligam
para mim e falam: “Eu não quero um parecer. Eu quero uma opinião legal sua,
[com] dez folhas no máximo. Porque parecer vai levar um mês e vai ter umas 80
folhas. Eu quero uma coisa simples, com o seu nome, em que você me diga que o
Nelson Nery pensa dessa ou daquela forma”. Isso não é parecer. É opinião legal.
Isso tem bastante no mercado. Agora, pareceristas você conta nos dedos.
ConJur — O senhor dá quatro pareceres por mês. O escritório
vive de pareceres?
Nelson Nery — Não. Eu vivo de pareceres, porque é uma coisa
singular, minha. Eu contrato parecer, a remuneração é minha. Os advogados que
trabalham nessas pesquisas são remunerados, mas muito modicamente, porque fazem
pesquisa, não escrevem nada. No contencioso do escritório eles recebem mais,
porque nesse caso todos trabalham.
ConJur — O que segura o escritório financeiramente é o
contencioso ou o consultivo?
Nelson Nery — Vamos dizer que fica 50% para cada um. Tem mês
que o faturamento é 60% contencioso e 40% do consultivo, tem mês que isso se
inverte.
ConJur — Qual o parecer mais trabalhoso que o senhor já fez?
Nelson Nery — Foram vários. Eu fiz um grande de planos
econômicos, quando vários bancos contrataram o parecer. A Federação Brasileira
de Bancos (Febraban) havia entrado em contato comigo para contratar o parecer,
como eu vi que era muito complexo e complicado, falei que levaria uns dois
meses para fazer o parecer, pois a responsabilidade é imensa. Nós estamos
falando de um passivo de mais de R$ 100 bilhões do sistema financeiro inteiro.
A minha responsabilidade cresce, então a minha remuneração tinha que ser alta.
A Febraban fez uma reunião e não aprovou o orçamento do parecer. Então um dos
bancos veio aqui e falou que ia bancar o parecer. Eu fiz e a tese foi acolhida
no Supremo. No dia seguinte, a Febraban veio aqui pedir dois pareceres para mim
e nem perguntou o valor.
ConJur — Esse foi o parecer mais caro que o senhor já
cobrou?
Nelson Nery — Não. Teve um parecer muito caro, eu não vou
falar sobre o caso nem sobre a empresa, que envolvia uma questão de petróleo, e
foi usado para uma arbitragem no exterior.
ConJur — O senhor pode dizer o valor?
Nelson Nery — Foi R$ 1,2 milhão. Esse foi o mais caro que eu
cobrei, mas o valor de mercado que eu cobro é mais barato que isso.
ConJur — Quanto é em média?
Nelson Nery — Costuma ser R$ 300 mil ou R$ 400 mil.
ConJur — É a média do mercado?
Nelson Nery — Não. A média do mercado é 30 mil.
ConJur — Como o parecerista não é o advogado do caso, a
responsabilidade dele é menor?
Nelson Nery — Não. É grande a responsabilidade. O Brasil
ainda não acordou para isso, mas na Europa e nos Estados Unidos já estão
discutindo a responsabilidade do advogado que presta consultoria — aquele que
diz: “Olha, acho que deve fazer assim ou seguir por esse caminho”. Nos Estados
Unidos e na Europa, se o cliente fizer o que for recomendado e der errado, ele
vai responsabilizar o advogado.
ConJur — Como se define o preço de um parecer?
Nelson Nery — Tem um caso engraçado. Uma vez, o nosso
escritório pediu um parecer para o [ministro aposentado do STF] Moreira Alves,
quando ele tinha acabado de aposentar do Supremo. Eu advogava para uma
siderúrgica e foi o primeiro caso que ele pegou depois de deixar o STF. Quando
fomos conversar com o ministro aposentado, ele falou: “Vamos estabelecer o
preço. Eu vou cobrar de vocês R$ 15 mil”. Eu respondi: “Ministro, eu não tenho
nem coragem de falar para o cliente que você vai cobrar R$ 15 mil, porque ele
vai desconfiar da qualidade do seu trabalho”. Eu estava atuando junto com o
Tercio Sampaio Ferraz e nós falamos para ele cobrar uns R$ 100 mil. O Moreira
Alves respondeu que achava caro demais e resolveu cobrar R$ 80 mil. O cliente topou
na hora.
ConJur — O senhor lembra qual foi o seu primeiro parecer?
Nelson Nery — Foi em um caso da Nestlé e Garoto. Eu tinha me
aposentado do Ministério Púbico no dia 28 de Dezembro de 2004, três dias antes
de entrar em vigor a Emenda [Constitucional] 45, que me impediria de advogar
por três anos. No dia 2 de janeiro, recebi uma ligação do Tercio Sampaio
Ferraz, que disse: “Nelson, você não quer dar um parecer aqui em um caso? Tem
que ser você, porque é um processo administrativo da Nestlé e Garoto, envolve
uma questão processual”. Ele foi à minha casa, porque eu ainda não tinha
escritório, e expôs o caso. Eu achei que era viável a tese e dei o parecer para
a Nestlé. O parecer não foi acolhido no Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (Cade), que acabou reprovando a operação da compra da Garoto pela
Nestlé. Depois eu entrei na ação e estou nela até hoje, defendendo a Nestlé no
Judiciário. Tem uma ação de anulação contra o acórdão do Cade. Nós ganhamos no
primeiro grau em tudo, no segundo grau eles reformaram a decisão e ela ficou
meio estranha. Agora tem Embargos Infringentes que estão há dois anos com o
relator.
ConJur — O senhor já esteve no MP e na advocacia. Como
avalia a relação do Ministério Público com o advogado e o juiz?
Nelson Nery — Eu sempre me dei bem com juízes e hoje à tarde
mesmo tive uma audiência no Ministério Público. Fui lá falar com o promotor
como advogado. Conversamos, juntei a petição, ele despachou na hora. A minha
relação é tranquila com juízes também. No geral, porém, é muito difícil a
relação de advogado, juiz e promotor. Juiz não gosta de promotor e os dois não
gostam de advogado.
ConJur — Isso se refletiu na “briga” pela Proposta de Emenda
Constitucional 37?
Nelson Nery — Foi até uma surpresa ela ter sido derrubada,
porque eu achava que, por o MP ter exorbitado um pouco suas funções
ultimamente, a PEC ia balançar um pouco a coisa. Já estava acertado no
Congresso que ia passar, mas o pessoal arrefeceu, porque a rua disse o
contrário.
ConJur — Mas a rua disse o contrário, porque se baseou em
uma informação errada?
Nelson Nery — A informação estava completamente distorcida.
E olha que eu fui do Ministério Público por 27 anos, fiz a Lei da Ação Civil
Pública, que está dando a maior força para o MP em inquérito civil. Tudo isso
que estão fazendo de caça a político, improbidade administrativa, é derivado de
inquérito civil, que é um instituto que eu inventei. Está colocado na Lei de
Ação Civil Pública, que foi redigida por mim e mais dois colegas. O Código do
Consumidor eu também fiz enquanto era promotor. Teve também a Lei de Política
Nacional do Meio Ambiente, da qual participei. Eram trabalhos que fazíamos como
Ministério Público para dar mais força para a instituição defender os direitos
da cidadania.
ConJur — E o senhor acha que ela está com força demais
agora?
Nelson Nery — Não é que está com força demais, mas a força
não está sendo usada corretamente. Você vê promotor hoje fazendo inquérito
civil como se fosse um procedimento inquisitorial. Ele não dá vista dos autos
para o investigado, fica escondendo testemunha, sem dizer quem foi depor. O
Ministério Público não é para isso. É para ser imparcial. Ele tem que
investigar com todo rigor, mas de forma imparcial. Tem que colocar no inquérito
as coisas que também favorecem o investigado. Hoje, parece que ele descarta isso,
dando a entender que só quer condenar o investigado.
ConJur — Esse é o problema da investigação pelo Ministério
Público?
Nelson Nery — Não é o Ministério Público. Eu era Ministério
Público e não fazia isso. Cansei de pedir arquivamento, cansei de pedir
absolvição de réu em júri. Promotor tem que ser promotor de Justiça, promover
Justiça. O inquérito é aberto porque tinha um indicio de qualquer fato
criminoso. No momento em que investigo com total imparcialidade, ouvindo prós e
contras, sopeso tudo e chego à conclusão de que não tem nada, eu mesmo arquivo.
O artigo 37 da Constituição diz que a administração pública é regida pelo
princípio da impessoalidade.
ConJur — Existe uma pressão institucional para que seja
feita a denúncia?
Nelson Nery — Não. Existem bandeiras. O promotor chama a
imprensa e diz: “Esse sujeito aqui não é sério e eu vou abrir uma investigação
contra ele”. Isso já tumultua o mercado. Está errado. Até pode dar notícia na
imprensa, mas não pode condenar o suspeito sem abrir a investigação.
ConJur — Mas o promotor que abre o inquérito se sente
pressionado a apresentar uma denúncia?
Nelson Nery — Ele acha que ele estará sendo incoerente com
ele mesmo, porque fez uma pressão tão grande, chamou a imprensa, falou tão mal
do suspeito, que não consegue admitir que não tem nada contra o sujeito. Os
instrumento que existem à disposição do Ministério Público são ótimos. Não
podemos generalizar, querendo tirar da instituição suas atribuições porque tem
alguns poucos que cometem abusos.
ConJur — Esse é o motivo de muitas denúncias caírem na
Justiça?
Nelson Nery — Caem todas. Quando se apresenta para o juiz o
que tem que ser apresentado, não sobra uma. O juiz recusa. O Ministério Público
faz aquele carnaval, chama a imprensa, execra, condena e crucifica o sujeito
perante a opinião pública, e, um ano depois, quando vem o processo, o juiz
fala: “Não é nada disso”.
ConJur — Esse comportamento do Ministério Público contribui para a sensação
de insegurança jurídica e impunidade da sociedade?
Nelson Nery — É isso. E quando o pessoal quer tirar poder do
MP, dizem: “Estão querendo impunidade. Não são sérios”. Isso é meia verdade,
pois também existem os aproveitadores.
ConJur — O MP pode ser condenado por litigância de má-fé?
Nelson Nery — Pode. Tem um acórdão, que acho que foi o
leading case, do Araken de Assis, [desembargador do Tribunal de Justiça] do Rio
Grande do Sul. Ele foi meu aluno. O Araken me ligou perguntando se eu achava
que MP pode agir de má-fé. Respondi que sim e ele me disse: “Então, vou te mandar
um acórdão para você ver, porque acabei de condenar um”. Hoje ele está
aposentado e advoga. Acho que deveria haver mais dessas condenações, porque a
sensação de impunidade que existe é péssima. O MP diz que fez a parte dele e
que a culpa é do Judiciário, mas ele não fez nada consistente.
ConJur — O que o senhor acha do uso do CPC na Justiça do
Trabalho? Ele pode ser usado para outras coisas, como na área tributária?
Nelson Nery — O CPC é aplicado subsidiariamente no processo
do trabalho. Os juízes trabalhistas não gostam disso e sempre procuram as
regras próprias do Tribunal Superior do Trabalho. Mas está escrito na lei. Por
exemplo: não tinha previsão de Embargos de Declaração, pega o CPC para aplicar.
Não tinha previsão de Ação Rescisória, pega o CPC para aplicar. Hoje está
previsto tudo isso na CLT, mas ela não tinha muitas coisas. É um uso
subsidiário perfeitamente viável. Não existe um código de processo tributário
aqui no Brasil, alguns países como Itália, França e Alemanha têm. A Lei de
Execução Fiscal é curta, tem poucos artigos. Como o Brasil não optou por
codificar o Direito Tributário, a lei tem lacuna. Por isso que o CPC tem uma
natureza jurídica, digamos, de lei geral do processo. Ele é perfeitamente
aplicado dentro do sistema ao processo tributário, ao processo trabalhista, até
ao processo penal.
ConJur — O artigo 741 do CPC fala da relatividade da coisa
julgada e, nos casos tributários, tem gerado problemas, que é aquela coisa ter
uma decisão transitada em julgado, mas quando muda a jurisprudência do Supremo
Tribunal em ADI, a decisão perde a validade. Essa interpretação está correta?
Nelson Nery — Está tudo errado. O Supremo e o STJ têm
decidido, mas o Supremo não é infalível. Ele é feito de homens também, que
erram. Como é que um artigo do CPC pode contrariar a Constituição Federal?
Aquele artigo foi uma proposta do [ministro] Gilmar Mendes, em uma Medida
Provisória, quando ainda era subchefe da Casa Civil do [ex-presidente] Fernando
Henrique [Cardoso]. Ele fez 99% das 100% de medidas inconstitucionais que o
Fernando Henrique tomou. Uma delas foi essa. Ele copiou literalmente a
Constituição portuguesa, que diz que quando a decisão tiver sido julgada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, a Fazenda poderá alegar
inexigibilidade, respeitada a coisa julgada. Ele só não colocou a parte que diz
“respeitada a coisa julgada”. Mas que tem que haver respeito, porque isso é
matéria constitucional. A Fazenda faz vista grossa, o Supremo faz vista grossa,
o STJ faz vista grossa, todo mundo faz vista grossa... Esse artigo é
absolutamente inconstitucional, formal ou materialmente. O segundo ponto é que
não pode ter mudança de jurisprudência sem alteração da lei, mudança de
jurisprudência no curso do processo com retroação, que é o que a Fazenda faz
todo dia. O Supremo muda uma decisão, o STJ muda, vem a Fazenda e entra com uma
rescisória. Coisa julgada é coisa julgada. O poder público não pode jamais
mudar a sua orientação de jurisprudência e ter eficácia ex tunc, retroagindo.
De jeito nenhum. Se mudei a jurisprudência é daqui para frente.
ConJur — O senhor é a favor ou contra o novo CPC?
Nelson Nery — Eu até seria a favor de um CPC novo.
ConJur — O senhor acha que é hora de fazer um novo CPC?
Nelson Nery — Não. Não acho.
ConJur — O senhor é a favor desse projeto que está posto?
Nelson Nery — Eu seria a favor de um que não fosse pautado
pelo Poder Judiciário. Esse é um código que visa apenas reduzir pilha de
processo de prateleira de juízes, do Supremo ao primeiro grau. Não querem que
tenha recurso disso e daquilo, querem incentivar o [artigo] 285-A [do CPC], que
prevê o julgamento liminar do mérito por improcedência, quando o caso
contrariar a jurisprudência... Então vão acabar com a pilha de processos
proibindo o cidadão de entrar com ações. Pense em um pobrezinho, com a demanda
que o INSS não quer atender, entrando com a ação. O responsável pelo protocolo
vira e fala: “Não. Isso aqui está contrariando a súmula tal do STJ, então eu
estou devolvendo a sua petição. O senhor está proibido de entrar com essa
ação”. Em cinco anos, em vez de ter 90 milhões de processos em andamento no
Brasil, vai ter 5 milhões, 10 milhões.
ConJur — Se as ações estão discutindo uma tese pacificada,
porque não tirá-las dos tribunais?
Nelson Nery — A equação não é tão assim cartesiana quanto se
está sugerindo. Primeiro, a Constituição é quem permite. Tem um artigo que diz
que a lei não pode excluir da apreciação judicial lesão, ameaça ou direito.
Então, não é o CPC que vai dizer que eu não posso entrar com a ação. A
Constituição disse que eu posso. E o Supremo já decidiu 20 vezes isso. Se não
fosse essa dinâmica, não se mudaria uma súmula do Supremo, não se revogaria uma
ação no STJ, não haveria mudança de jurisprudência. Isso acontece porque novos argumentos,
novas teses, estão surgindo e os juízes param para pensar e falam: “Fizemos
besteira nas decisões anteriores. Vamos anular isso e cancelar essa súmula”.
ConJur — O novo CPC trata o Judiciário como um poder
perfeito...
Nelson Nery — Isso. Quando ele não é perfeito. É o chamado
Direito Jurisprudencial. Eu sou contra, absolutamente contra o Direito
Jurisprudencial.
ConJur — O Brasil não está caminhando para o Common Law?
Nelson Nery — Não. Isso é um mito. O Common Law trabalha com
precedentes. A gente não tem essa fórmula aqui no Brasil. Um precedente só será
encarado como tal no futuro. Ou seja: o justice da Supreme Court of United
States julgou, em 1700, o caso Fulano X Cicrano. Julgou normalmente. Em 1850,
alguém pega e fala: “O justice julgou de um jeito que eu concordo. Vou aplicar
nesse caso também”. Pronto, o caso virou precedente 150 anos depois. Não é a
corte que diz o que vai servir como precedente no futuro.
ConJur — Cria-se um precedente obrigatório?
Nelson Nery — Então não é precedente. No Common Law, quem
fixa o precedente é o “juiz futuro”, não o “juiz passado”. O Supremo não pode
dizer como os juízes vão decidir daquele ponto em diante. Isso não é
precedente. Esse sistema não é evolução para o Common Law, é uma involução para
as Ordenações do reino de Portugal. É uma legislação seiscentista do Brasil, do
direito português. A Casa de Suplicação, que era o Supremo de Portugal, dizia
como deveriam julgar com os chamados assentos portugueses, que eram a nossa
súmula vinculante de hoje. E tanto eles eram ridículos, que foram declarados
inconstitucionais pela Corte Constitucional de Portugal. A nossa Constituição,
legalizou isso, que é a súmula vinculante. Só não foi tão forte o movimento
porque houve uma grita geral no Brasil. Se tivesse deixado, seria muito mais
autoritário do que é hoje. E o Supremo tem baixado um monte de súmulas, várias
delas inconstitucionais.
ConJur — Que súmulas são inconstitucionais?
Nelson Nery — Existem várias. A inconstitucionalidade é
cabal, os ministros cometeram muitas inconstitucionalidades ao redigirem
algumas súmulas. Não é só opinião minha. Certa vez, quando o Supremo baixou 60
súmulas de uma vez, eu estava em um congresso, em uma mesa com os ministros [do
Supremo] Sidney Sanches, Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio, quando me
perguntaram sobre as súmulas. Eu respondi: “O Supremo baixou diversas súmulas
que ele não tinha competência para baixar. Quem diz a última palavra sobre
interpretação de lei federal no país é o STJ”. O Supremo não tem competência.
Não é questão de hierarquia. O Sidney Sanches lembrou que o STF, quando julga
ação de competência originária, também julga lei federal, mas eu rebati dizendo
que eles têm de obedecer o STJ nessa matéria. A Súmula Vinculante 11, sobre o
uso de algemas, por exemplo, é inconstitucional. Não pelo mérito, mas pela
forma.
ConJur — Por que?
Nelson Nery — A Constituição diz que, depois de reiteradas
decisões do Supremo em um sentido, se ainda persistir insegurança no
Judiciário, a corte deve baixar a súmula vinculante. A súmula da algema foi
criada na primeira que o caso chegou ao Supremo.
ConJur — Qual seria outro exemplo?
Nelson Nery — A Súmula Vinculante 5 diz: “A falta de defesa
técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a
Constituição”. Essa súmula é inconstitucional e foi criada porque havia um sem
número de ações no Supremo questionando processos administrativos por não ter
sido concedido advogado para o acusado. Alguns previam suspensão, outros
advertência, outros demissão. Ou seja, chega o patrão e diz que o empregado vai
ser demitido por ter cometido uma falta funcional. Ele dá ao funcionário tempo
para ele fazer a própria defesa. O sujeito com pouca instrução provavelmente
não sabe o que é uma portaria inepta nem a prescrição da pretensão punitiva
administrativa. A Constituição diz que se dará o contraditório e a ampla defesa
no processo administrativo judicial, mas simplesmente dar tempo para o
funcionário falar, sem o auxílio de um advogado, não é ampla defesa.
ConJur — Há outras súmulas inconstitucionais?
Nelson Nery — A Súmula Vinculante 3 diz que incide a
garantia do contraditório no processo do Tribunal de Contas da União. Até aí,
repete o que a Constituição diz, ia no caminho certo, mas [os ministros] resolveram
acrescentar a seguinte observação: “excetuada a apreciação da legalidade do ato
de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”. Como assim? A
Constituição não faz ressalvas. Uma das características da hermenêutica
constitucional é dar uma interpretação ad amplianda nas garantias
constitucionais, porque todo o texto constitucional tem que ser interpretado
restritivamente, só o é ampliativamente nas garantias constitucionais, nos
direitos fundamentais e direitos sociais. É um absurdo essa súmula. O Supremo
está cometendo uma série de inconstitucionalidades em súmula vinculante, uma
atrás da outra. Então, nesse sentido, não está sabendo agir..
ConJur — E nesse balaio entra repercussão geral, recurso
repetitivo, os filtros...
Nelson Nery — Tudo tem o objetivo de baixar pilha de
processos de juiz, ninguém pensou no jurisdicionado. Se eu acabo com o
processo, faço uma estatística para a população mostrando que o Judiciário está
uma maravilha, mas ninguém consegue entrar com uma ação.
ConJur — Então qual é a solução para baixar a pilha de
processos na mesa dos juízes?
Nelson Nery — O poder público cumprir a Constituição é a
primeira solução. É o pacto social que tem que ser cumprido. O maior cliente do
Poder Judiciário é o poder público, ele não cumpre a Constituição nem as leis.
ConJur — Assim criaria uma segurança jurídica, sem impedir
ninguém de entrar com uma ação?
Nelson Nery — Depois de muitas críticas, fizeram algumas
emendas no projeto do novo CPC, colocando o distinguishing, o overruling, que
são mecanismos que o Common Law tem para fazer revisões e precedência. Mas
continua o defeito na premissa: súmula não é a mesma coisa que precedente. O
projeto quer vincular tudo. Aí eu pergunto: “Súmula vinculante vincula,
jurisprudência vincula, e a lei, não vincula?” O juiz tem que, antes de tudo,
aplicar a lei. A lei está escrita. Já a jurisprudência muda a toda hora. Não
pode servir de lei. Eu já vi um ministro do STJ votar um caso, sair para tomar
um cafezinho, voltar para a sessão e votar exatamente o contrário, em outro
caso.
ConJur — O que a gente vê em julgamentos é a discussão sobre
qual era a vontade do constituinte ou do legislador nesse ou naquele artigo. É
normal haver essa discussão?
Nelson Nery — Achar que a lei não dá margem a nenhuma dúvida
é ser positivista, é ficar jungido à estrita literalidade da lei. Isso é um
sofisma. Mas existem verdades, como quando a lei diz que fazer alguma coisa é
proibido. É simples. Os deputados e senadores, e o presidente quando sancionou
a lei, quiseram que fosse proibida determinada coisa. Se os legisladores acham
que pode casar homem com homem, mudem a Constituição. Isso não pode ficar a
cargo do Judiciário porque os deputados não querem desgaste com a bancada
evangélica. São os ônus do Estado de Direito. Quem faz lei é o Congresso, não é
o presidente, nem o Supremo. O ativismo [judicial] é outra imbecilidade que
inventaram e que estão apoiando. Essa história de “Supremo protagonista” é
contra o Estado de Direito, isso é autoritário, o Supremo não pode mudar a
Constituição. Ele não foi eleito pelo povo para mudar a constituição, só pode
decidir o caso concreto. Se o Joaquim quer casar com Manuel e o caso chega até
o Supremo, ele pode admitir aquele casamento. Acabou. Isso não pode virar
jurisprudência válida para tudo e para permitir o casamento entre pessoas do
mesmo sexo no Brasil.
Fonte: CONJUR
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