domingo, 2 de novembro de 2014

A inconstitucionalidade do diferencial de alíquotas do comércio e indústria no Rio Grande do Sul

A inconstitucionalidade do diferencial de alíquotas do comércio e indústria no Rio Grande do Sul

Francisco Silva Laranja
Advogado Tributarista

A Constituição Federal define os parâmetros de como o ICMS deve ser instituído e regulamentado pelos entes competentes para a sua instituição e cobrança: os Estados-membros.

O art. 155 traz diversas regras que funcionam como matrizes para que os Estados extraiam as bases do imposto de acordo com o comando constitucional.

Determina a CF que o imposto deve ser regulamentado em nível nacional por uma lei complementar, estando hoje em vigor a Lei Kandir (LC 87 de 1996) que deixou de tratar (talvez intencionalmente) do diferencial e alíquotas ficando com cada Estado a responsabilidade de regulamentar o disposto nos incisos VII e VIII do art. 155 da CF.

Eis o que diz a CF:

Seção IV
DOS IMPOSTOS DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
VII - em relação às operações e prestações que destinem bens e serviços ao consumidor final localizado em outro Estado, adotar-se-á:
a) a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;
b) a alíquota interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;
VIII - na hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao Estado da localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;
(...)

A primeira pergunta que devemos fazer ao Estado na regulamentação do diferencial é: se trata de nova hipótese de incidência tributária (do ICMS)? Sim. Sem dúvida. Ao definir a entrada do Estado como fato gerador do ICMS, o Estado está criando nova hipótese de incidência, com base de cálculo e alíquotas próprias.

A segunda questão é: pode o Estado criar o diferencial para qualquer tipo de entrada interestadual? Não. A resposta deve ser negativa, pois a CF criou as balizas do diferencial, quais são:

- operações e prestações interestaduais;
- destinadas a consumo final;
- a alíquota será o percentual correspondente à diferença da alíquota interna para a alíquota interestadual.

O segundo pressuposto para a criação do diferencial de alíquotas é: destinadas a consumo final, ou seja, para contribuinte na condição de consumidor final, pois quando o destino for não-contribuinte aplica-se a alíquota interna de origem e dessa forma não há diferencial a ser recolhido. O diferencial é a diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual (e essa só se aplica a contribuintes).

Neste ponto o Estado do Rio Grande do Sul desobedeceu ao comando constitucional quando no dia 15 de janeiro de 2009 publicou no DOE o Decreto 46.137, com efeitos a partir de 01/02/2009 criando o diferencial de alíquotas para mercadorias destinadas a comercialização, incluindo o parágrafo 4º ao art. 46 do Livro I do RICMS/RS:

"Parágrafo 4º - Na hipótese de estabelecimento que comercialize mercadorias receber de outra unidade da Federação mercadoria classificada nos Capítulos 01 a 97 da NBM/SH-NCM, exceto as relacionadas no Apêndice II, Seções II e III, o imposto relativo à operação subsequente é devido no momento da entrada da mercadoria no território deste Estado, devendo ser pago:
(...)
NOTA 02 - O valor do imposto será calculado mediante a aplicação da alíquota interna e, se for o caso, do percentual de base de cálculo reduzida, sobre o valor de aquisição da mercadoria constante da NF, deduzindo-se, após, o valor do ICMS destacado no referido documento, relativo a essa mercadoria, observadas as disposições dos arts. 31 e 33 a 35.

O art. 46 do Livro I trata de momento de pagamento, e assim, disfarçando o diferencial de alíquotas de prazo de pagamento o Estado cria uma nova hipótese de incidência do ICMS sobre as entradas para mercadorias recebidas de outros Estados para comercialização, descumprindo o comando constitucional que somente admite a criação de diferencial de alíquotas para mercadorias destinadas a consumo final.

Não é por acaso que a CF prevê a possibilidade de criação de diferencial somente para as mercadorias destinadas a consumo final. A previsão busca incentivar que os contribuintes consumidores finais comprem do seu Estado, e caso queiram comprar itens para consumo final de outros Estados, terão que equiparar as alíquotas ficando sujeitos à mesma tributação.

Porém, quando tratamos de mercadorias para revenda a atividade da empresa está envolvida, assim como o seu mercado de atuação, e em diversos setores industriais o fornecedor está localizado em outro Estado, não havendo fornecedor do item no Estado onde está localizado o comércio, ficando o comércio obrigado a comprar de fora e assim o diferencial perde o seu objetivo de imposto aplicado ao consumidor final para se transformar numa nova tributação para o comércio, revogando os efeitos práticos das alíquotas interestaduais.

Neste ponto o diferencial fere o inciso IV do art. 155 da CF que determina que resolução do Senado Federal estabeleça as alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais. Se em qualquer hipótese é necessário recolher a diferença de alíquota, fica o comércio submetido sempre à alíquota interna, perdendo razão de ser da alíquota interestadual, e mais, acaba o Estado fixando, por meio torto, as alíquotas interestaduais, gerando uma nova e distorcida hipótese de incidência do ICMS pelas entradas.

Não obstante, o que mais chama a atenção neste diferencial de alíquotas do Rio Grande do Sul, ampliado em 2013 para incidir sobre matérias-primas pelo Decreto 50.057 quando a matéria-prima vem com 4%, é que esta nova e torta hipótese de incidência do ICMS foi criada por Decreto disfarçada de momento de pagamento, rasgando o princípio da Legalidade Tributária.

5% sobre todas as compras de fora do RS não é alteração de data de recolhimento, é nova hipótese tributária, e como tal reclama lei.

É princípio fundamental do Direito Tributário a legalidade, a previsão legal, a submissão do Poder Executivo arrecadante à vontade do povo expresso pelos seus representantes no Parlamento. E o que faz o Governo Estadual do RS? Cria nova hipótese de incidência do ICMS por Decreto, Decreto esse surpreendemente ratificado pelo TJRS.

Alguns perguntarão: mas isso foi contestado no Poder Judiciário? Foi, mas como o diferencial foi instituído no capítulo do prazo de pagamento, disfarçado de momento de pagamento, especificamente de antecipação de pagamento, a matéria julgada foi a possibilidade de Decreto estadual fixar o momento do pagamento, escapando o ponto central: a criação de nova hipótese de incidência não prevista no art. 155 da CF e por Decreto estadual.

A partir desse momento o Decreto 46.137 se torna um precedente perigoso.

Receosa de novas discussões judiciais e para obedecer a não-cumulatividade do ICMS novo Decreto foi publicado incluindo a possibilidade do crédito do diferencial no mês seguinte ao pagamento para as empresas tributadas pelo Lucro Real, Presumido e Arbitrado, ficando os optantes pelo Simples Nacional sujeitos à cumulatividade da exação, pois o SN não desconta créditos na apuração do ICMS dentro da sistemática do Simples.

A possibilidade de creditamento no período de apuração posterior comprova que se trata de imposto e não momento de pagamento.

Imitando o mestre Alfredo Augusto Becker no capítulo “Naufrágio Fiscal” da obra “Pandemônio Tributário”, estamos aqui descrevendo o caos, e o caos sempre pode ser maior, e será!

No dia 10 de setembro de 2013 a Assembleia Legislativa do Rio Grand do Sul aprovou uma lei que cria a isenção do diferencial de alíquotas para os optantes do Simples Nacional. Na mesma tarde da aprovação da lei o Secretário da Fazenda em entrevista para os jornais locais manifestou que a SEFAZ não vai cumprir a lei – aqui passamos da aberração tributária para o desrespeito à separação dos poderes e arbitrariedade total – pois, segundo o jornal Zero Hora de Porto Alegre “contraria os interesses econômicos do Estado” palavras do secretário.[1]

Não demorou em Estado se manifestar, e o fez por nota oficial, confira a nota divulgada pela Secretaria da Fazenda:

“(...) A Secretaria alerta também que o PL aprovado e promulgado pela Assembleia Legislativa sobre o diferencial de alíquota não tem efeitos sobre o recolhimento do Imposto de Fronteira no prazo regulamentar. Desse modo, a Sefaz orienta os contribuintes a continuarem com o pagamento normal. (...).”

Veja o quadro: novo imposto sobre entradas criado por decreto; imposto esse que contraria a exegese da CF; três anos depois é criada uma hipótese legítima de isenção por lei e o Governo diz que não vai cumpri-la.

Mas não para por aí!

Entrevistas e manifestações do Governo do Rio Grande do Sul estão expondo a intenção do Estado em discutir judicialmente a constitucionalidade da lei que cria a isenção do diferencial para os optantes pelo Simples Nacional, e o principal argumento seria: “tratar-se de lei orçamentária, pois afeta o caixa do Governo”.

Lei orçamentária é outra coisa, própria do Direito Financeiro do Estado, visa prever a receita e fixar as despesas correntes e de capital para o quadriênio e para o exercício (PPA, LDO e LOA), não tendo nenhuma relação com lei tributária que cria hipótese de isenção.

O argumento é falso. O CTN exige lei para criar isenção tributária, seria absurdo outorgar a iniciativa única e exclusiva ao Executivo. Isso nos parece ares de ditadura.

Mas, para prever o caos, não duvide que o TJRS possa se posicionar a favor da SEFAZ entendendo que lei que cria isenção é orçamentária e assim haveria um vício de origem, pois só o governador pode propor lei orçamentária, derrubando-se, destarte, o benefício fiscal criado por lei para os optantes pelo Simples, mantendo-se em vigor o inconstitucional decreto que criou esta nova hipótese de incidência tributária: o diferencial de alíquota criado para arrecadar do comércio e da indústria gaúchos.




[1] http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/economia/noticia/2013/09/assembleia-aprova-isencao-de-adicional-do-icms-para-produtos-de-fora-do-estado-4264299.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário