A inconstitucionalidade do
diferencial de alíquotas do comércio e indústria no Rio Grande do Sul
Francisco Silva Laranja
Advogado Tributarista
A
Constituição Federal define os parâmetros de como o ICMS deve ser instituído e
regulamentado pelos entes competentes para a sua instituição e cobrança: os Estados-membros.
O art. 155
traz diversas regras que funcionam como matrizes para que os Estados extraiam
as bases do imposto de acordo com o comando constitucional.
Determina a
CF que o imposto deve ser regulamentado em nível nacional por uma lei
complementar, estando hoje em vigor a Lei Kandir (LC 87 de 1996) que deixou de tratar
(talvez intencionalmente) do diferencial e alíquotas ficando com cada Estado a
responsabilidade de regulamentar o disposto nos incisos VII e VIII do art. 155
da CF.
Eis o que diz
a CF:
Seção IV
DOS IMPOSTOS
DOS ESTADOS E DO DISTRITO FEDERAL
Art. 155.
Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
II - operações
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as
operações e as prestações se iniciem no exterior;
§ 2.º O
imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:
(...)
VII - em
relação às operações e prestações que destinem bens e serviços ao consumidor
final localizado em outro Estado, adotar-se-á:
a) a alíquota
interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto;
b) a alíquota
interna, quando o destinatário não for contribuinte dele;
VIII - na
hipótese da alínea "a" do inciso anterior, caberá ao Estado da
localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a
alíquota interna e a interestadual;
(...)
A primeira
pergunta que devemos fazer ao Estado na regulamentação do diferencial é: se
trata de nova hipótese de incidência tributária (do ICMS)? Sim. Sem dúvida. Ao
definir a entrada do Estado como fato gerador do ICMS, o Estado está criando
nova hipótese de incidência, com base de cálculo e alíquotas próprias.
A segunda
questão é: pode o Estado criar o diferencial para qualquer tipo de entrada
interestadual? Não. A resposta deve ser negativa, pois a CF criou as balizas do
diferencial, quais são:
- operações e
prestações interestaduais;
- destinadas a
consumo final;
- a alíquota
será o percentual correspondente à diferença da alíquota interna para a
alíquota interestadual.
O segundo
pressuposto para a criação do diferencial de alíquotas é: destinadas a consumo
final, ou seja, para contribuinte na condição de consumidor final, pois quando
o destino for não-contribuinte aplica-se a alíquota interna de origem e dessa
forma não há diferencial a ser recolhido. O diferencial é a diferença entre a
alíquota interna e a alíquota interestadual (e essa só se aplica a
contribuintes).
Neste ponto o
Estado do Rio Grande do Sul desobedeceu ao comando constitucional quando no dia
15 de janeiro de 2009 publicou no DOE o Decreto 46.137, com efeitos a partir de
01/02/2009 criando o diferencial de alíquotas para mercadorias destinadas a
comercialização, incluindo o parágrafo 4º ao art. 46 do Livro I do RICMS/RS:
"Parágrafo
4º - Na hipótese de estabelecimento que comercialize mercadorias receber
de outra unidade da Federação mercadoria classificada nos Capítulos 01 a 97 da
NBM/SH-NCM, exceto as relacionadas no Apêndice II, Seções II e III, o imposto
relativo à operação subsequente é devido no momento da entrada da mercadoria no
território deste Estado, devendo ser pago:
(...)
NOTA 02 - O
valor do imposto será calculado mediante a aplicação da alíquota interna e, se
for o caso, do percentual de base de cálculo reduzida, sobre o valor de
aquisição da mercadoria constante da NF, deduzindo-se, após, o valor do ICMS
destacado no referido documento, relativo a essa mercadoria, observadas as
disposições dos arts. 31 e 33 a 35.
O art. 46 do
Livro I trata de momento de pagamento, e assim, disfarçando o diferencial de
alíquotas de prazo de pagamento o Estado cria uma nova hipótese de incidência
do ICMS sobre as entradas para mercadorias recebidas de outros Estados para
comercialização, descumprindo o comando constitucional que somente admite a
criação de diferencial de alíquotas para mercadorias destinadas a consumo
final.
Não é por
acaso que a CF prevê a possibilidade de criação de diferencial somente para as
mercadorias destinadas a consumo final. A previsão busca incentivar que os
contribuintes consumidores finais comprem do seu Estado, e caso queiram comprar
itens para consumo final de outros Estados, terão que equiparar as alíquotas
ficando sujeitos à mesma tributação.
Porém, quando
tratamos de mercadorias para revenda a atividade da empresa está envolvida,
assim como o seu mercado de atuação, e em diversos setores industriais o
fornecedor está localizado em outro Estado, não havendo fornecedor do item no Estado
onde está localizado o comércio, ficando o comércio obrigado a comprar de fora
e assim o diferencial perde o seu objetivo de imposto aplicado ao consumidor
final para se transformar numa nova tributação para o comércio, revogando os
efeitos práticos das alíquotas interestaduais.
Neste ponto o
diferencial fere o inciso IV do art. 155 da CF que determina que resolução do
Senado Federal estabeleça as alíquotas aplicáveis às operações e prestações
interestaduais. Se em qualquer hipótese é necessário recolher a diferença de
alíquota, fica o comércio submetido sempre à alíquota interna, perdendo razão
de ser da alíquota interestadual, e mais, acaba o Estado fixando, por meio
torto, as alíquotas interestaduais, gerando uma nova e distorcida hipótese de
incidência do ICMS pelas entradas.
Não obstante,
o que mais chama a atenção neste diferencial de alíquotas do Rio Grande do Sul,
ampliado em 2013 para incidir sobre matérias-primas pelo Decreto 50.057 quando
a matéria-prima vem com 4%, é que esta nova e torta hipótese de incidência do
ICMS foi criada por Decreto disfarçada de momento de pagamento, rasgando
o princípio da Legalidade Tributária.
5% sobre
todas as compras de fora do RS não é alteração de data de recolhimento, é nova
hipótese tributária, e como tal reclama lei.
É princípio
fundamental do Direito Tributário a legalidade, a previsão legal, a submissão
do Poder Executivo arrecadante à vontade do povo expresso pelos seus
representantes no Parlamento. E o que faz o Governo Estadual do RS? Cria nova
hipótese de incidência do ICMS por Decreto, Decreto esse surpreendemente
ratificado pelo TJRS.
Alguns
perguntarão: mas isso foi contestado no Poder Judiciário? Foi, mas como o
diferencial foi instituído no capítulo do prazo de pagamento, disfarçado de
momento de pagamento, especificamente de antecipação de pagamento, a matéria
julgada foi a possibilidade de Decreto estadual fixar o momento do pagamento,
escapando o ponto central: a criação de nova hipótese de incidência não
prevista no art. 155 da CF e por Decreto estadual.
A partir
desse momento o Decreto 46.137 se torna um precedente perigoso.
Receosa de
novas discussões judiciais e para obedecer a não-cumulatividade do ICMS novo
Decreto foi publicado incluindo a possibilidade do crédito do diferencial no
mês seguinte ao pagamento para as empresas tributadas pelo Lucro Real,
Presumido e Arbitrado, ficando os optantes pelo Simples Nacional sujeitos à
cumulatividade da exação, pois o SN não desconta créditos na apuração do ICMS dentro
da sistemática do Simples.
A
possibilidade de creditamento no período de apuração posterior comprova que se
trata de imposto e não momento de pagamento.
Imitando o
mestre Alfredo Augusto Becker no capítulo “Naufrágio Fiscal” da obra
“Pandemônio Tributário”, estamos aqui descrevendo o caos, e o caos sempre pode
ser maior, e será!
No dia 10 de
setembro de 2013 a Assembleia Legislativa do Rio Grand do Sul aprovou uma lei
que cria a isenção do diferencial de alíquotas para os optantes do Simples
Nacional. Na mesma tarde da aprovação da lei o Secretário da Fazenda em
entrevista para os jornais locais manifestou que a SEFAZ não vai cumprir a lei
– aqui passamos da aberração tributária para o desrespeito à separação dos
poderes e arbitrariedade total – pois, segundo o jornal Zero Hora de Porto
Alegre “contraria os interesses econômicos do Estado” palavras do secretário.[1]
Não demorou
em Estado se manifestar, e o fez por nota oficial, confira a nota divulgada
pela Secretaria da Fazenda:
“(...) A
Secretaria alerta também que o PL aprovado e promulgado pela Assembleia
Legislativa sobre o diferencial de alíquota não tem efeitos sobre o
recolhimento do Imposto de Fronteira no prazo regulamentar. Desse modo, a Sefaz
orienta os contribuintes a continuarem com o pagamento normal. (...).”
Veja o
quadro: novo imposto sobre entradas criado por decreto; imposto esse que
contraria a exegese da CF; três anos depois é criada uma hipótese legítima de
isenção por lei e o Governo diz que não vai cumpri-la.
Mas não para
por aí!
Entrevistas e
manifestações do Governo do Rio Grande do Sul estão expondo a intenção do
Estado em discutir judicialmente a constitucionalidade da lei que cria a
isenção do diferencial para os optantes pelo Simples Nacional, e o principal
argumento seria: “tratar-se de lei orçamentária, pois afeta o caixa do
Governo”.
Lei
orçamentária é outra coisa, própria do Direito Financeiro do Estado, visa
prever a receita e fixar as despesas correntes e de capital para o quadriênio e
para o exercício (PPA, LDO e LOA), não tendo nenhuma relação com lei tributária
que cria hipótese de isenção.
O argumento é
falso. O CTN exige lei para criar isenção tributária, seria absurdo outorgar a
iniciativa única e exclusiva ao Executivo. Isso nos parece ares de ditadura.
Mas, para
prever o caos, não duvide que o TJRS possa se posicionar a favor da SEFAZ entendendo
que lei que cria isenção é orçamentária e assim haveria um vício de origem,
pois só o governador pode propor lei orçamentária, derrubando-se, destarte, o
benefício fiscal criado por lei para os optantes pelo Simples, mantendo-se em
vigor o inconstitucional decreto que criou esta nova hipótese de incidência
tributária: o diferencial de alíquota criado para arrecadar do comércio e da
indústria gaúchos.
[1] http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/economia/noticia/2013/09/assembleia-aprova-isencao-de-adicional-do-icms-para-produtos-de-fora-do-estado-4264299.html
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